segunda-feira, 27 de setembro de 2021

bolinha

eu vejo elas dormindo confortáveis, ronronantes e dou graças por dar um lar com amor. eu penso que eu não sei onde o bolinha tá e me dá uma dor.

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sujo, maltrapilho e esquelético, tu apareceste embaixo do nosso carro. escondido no escuro, depois de revirar o lixo. tinha um sangue escuro no teu pescoço e um corte no focinho, que te davam um ar de morte e abandono. medroso, arisco. a gente começou a te dar comida porque ficou com pena de te ver revirar o lixo. e com medo que te batessem por rasgar os sacos. mas não tínhamos ideia se ias sobreviver. era tão difícil tu te aproximares.

com o tempo, a ferida cicatrizou e aquele sangue velho foi saindo. o que antes era só pele e osso, foi virando uma barriguinha safada. a gente viu teu olho azul. a cicatriz do rosto foi sendo coberta pelos pelinhos, que aos poucos vimos que eram brancos com umas partes cinza claro. esse branco evidenciou as tuas duas bolinhas pretas embaixo do rabo e, rindo, a gente decidiu te chamar de bolinha, apesar de contar pra todo mundo que o nome era por causa da tua barriga.

alguns vizinhos do prédio também se solidarizaram e te davam comida. teve vizinho que comprou ração só pra te dar. mas, com o passar dos meses, só a gente seguia cumprindo o rigoroso dever de te alimentar, fizesse chuva ou sol. tu já conhecias o barulho do nosso carro, da chinela quando a gente andava e do pote que a gente sacudia com a ração. era um miau miau miau doido nessa hora. a gente pensou em te resgatar, planejou. mas com as duas gatas estressadas e perdendo pelo, eu tive muito receio de colocar elas em risco, ainda mais depois que eu vi que a nina só melhorou com antidepressivo. 

eu me resignei em te ver na rua, tomando água da vala, se abrigando na casa abandonada, amontoada de lixo, dormindo embaixo dos carros à noite, tendo que fugir do gato rabudinho que reivindica esse território. me contentei em saber que tu te abrigava aqui no prédio, às vezes no tapete de casa - porque notei os pelinhos brancos nele - quando já tava bem tarde da madrugada e quando chovia, porque a casa abandonada ficava alagada quando chovia.

***

o novo capítulo da tua história começou mais de um ano depois, quando o vizinho que tinha passado a pandemia quase toda fora da cidade voltou. e ficou com tanta dó e quis te adotar. mas tu tão arisco, tão desconfiado. ele tão sem jeito, tão sem te conhecer. eu tentei ajudar vocês dois, me estressei. porque não dava certo e agora eu tinha pressa em te tirar da rua.

acabou que ele viajou de novo e pediu pra eu te cuidar. agora tu já tinhas vasilhas de água e de comida, que ficavam na porta do prédio. alguns vizinhos mexiam contigo, outros pareciam não ligar. de qualquer forma, eu já não me preocupava mais porque sabia que logo tu ia sair dali. mas acho que não deu tempo.

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quando eu vi o finalzinho do filme que tava passando no domingo e o bichinho que recebia um abraço da menina que o adotou falava pro outro "então, isso que é o amor?" eu chorei que só porque eu lembrei que o bolinha não sabia o que era amor. e que tem tanto bichinho que não sabe. eu fiquei com vontade de descer, mas como não queria te dar mais ração, porque tu tava muito gordo e ia miar alto até eu te dar, eu não quis descer pra não te deixar mais rechonchudo. eu acho que eu errei em não descer, nem que fosse pra ter que te dar 3 grãos de ração e trocar tua água. mas eu nem sei se tu ainda estaria lá.

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oito da noite, domingo a gente fica tão sem horário que acabei atrasando em uma hora a tua comida. um pouco antes de eu descer, eu vi a mensagem no grupo do prédio. abri a porta e vi aquela cena aterrorizante. o chão do primeiro andar cheio do que parecia ser sangue seco, parecia um filme de terror. na minha porta, pisei em alguma coisa grudenta, não sei se era saliva ou bile. ou xixi. desci correndo e tuas vasilhas tinham sumido. tu sumiste. corri pra casa abandonada, olhei debaixo dos carros, dentro do lixeiro, andei pelo quarteirão. subi o segundo andar. nem sinal. 

***

essa história ainda não teve fim. ou eu ainda não me acostumei com esse final, não sei. eu vou descer com a vasilha de ração mais tarde e sacudir e esperar pra ver se tu vens. eu não sei se o vizinho escroto aqui do lado, que assim que eu perguntei de ti começou a demonstrar a insatisfação por tu ficares no prédio, fez alguma coisa contigo. numa conversa muito esquisita, ele disse que não tinha te visto. depois, disse que viu sim, mas que tu tava normal e limpo, apesar de estar no meio do chão todo sujo de sangue. eu não sei se ele fez alguma coisa ruim contigo, mas a certeza é que ele não fez o que deveria fazer. não te socorreu, nem avisou ninguém pra fazer isso. também não falou de imediato quando eu perguntei, preferiu reclamar da sujeira, que, aliás, parece que ele foi o primeiro a notar.

eu não sei se te bateram, não tem rastro nas escadas. não sei se mataste um bicho e saiu pra dar uma viajadinha por uns dias. não sei se te envenenaram. não sei se levaram teu corpinho, vivo ou morto. não sei se essas manchas não tem nada a ver com teu sumiço, se algum doido ensanguentado passou por aqui e conseguiu sujar o chão sem deixar pegadas e limpou só a sujeira as escadas. ou se passou com um lixo podre ou uma carne descongelada e deixou esse presente no corredor. mas tuas vasilhas sumiram, isso alguém fez de propósito. 

ô, bolinha, me perdoa.

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